11h50 - quinta, 29/10/2020

Farolinologia


António Martins Quaresma
Quando congeminava o destino a dar a velhos papéis, passei os olhos, rapidamente, por uns pequenos textos que, há largos anos, publiquei num jornal regional, e não pude discordar mais do seu conteúdo. Fui eu quem os escreveu, é verdade, mas vi-me forçado a reconhecer que esses escritos revelam ignorância e falta de reflexão, ou, pelo menos, aquilo a que se poderá designar por "verdura". Salva-se o facto de serem coisas de um escriba sem importância, nem ambições.
Esta entrada de auto-flagelação foi sugerida por duas situações que presenciei, no fim-de-semana de 3 e 4 de Outubro. Numa delas, um sujeito que fazia parte de um magote parado sobre a passadeira marginal, junto ao rio, em Milfontes, apontando para a casa modernista de Vila Formosa, na outra margem do Mira, informava peremptoriamente que se tratava de um "castelo". Nada de especial: com frequência ouvem-se os mais diversos despautérios de convictos milfontólogos de última hora, e se, mesmo de passagem, me refiro a ela é só pela sua carga anedótica.
Aquela que que me leva a escrever estas linhas passou-se na manhã de 3 de Outubro, quando no Farol, isto é, na ponta ou rotunda do Farol, em Milfontes, ponto de encontro das pessoas que iam iniciar um percurso guiado em torno da moagem e dos moinhos, integrado no projecto "Alentejo – Patrimónios", da Direção Regional da Cultura do Alentejo. Inesperadamente, o grupo foi interpelado por um, suponho, militar da Marinha que conduzia uma pick-up da segurança das praias, informando-o de que não era "farol", era "farolim" e acrescentando que farol era o do Cabo Sardão. Ao que parece, um dos participantes havia antes pedido informação ao militar sobre o sítio da reunião e daí a sua intervenção.
Claro que quem se nos tinha dirigido, cuja boa intenção, apesar de certa sobranceria, deve reconhecer-se, ignorava a maior parte da história do sítio: na realidade, só sabia que o edifício, ali ao lado, era, ou estava apetrechado por, um "farolim", aliás como se encontra assinalado no painel de azulejos sobre a porta de entrada (hoje um pouco escondido) e que este não faz parte da lista oficial dos faróis portugueses. O que ele não tinha, e dificilmente teria, era a noção de que a sua "ciência" não passava de um bocadinho da "ciência" sobre o assunto.
É natural que, ao longo dos 131 anos de idade do farolim (mais antigo que o farol do Cabo Sardão), ele tenha deixado marcas no léxico local. Trata-se, é certo, de uma luz de pequeno alcance (em rigor, o tal farolim), destinada apenas ao movimento da navegação da barra do rio Mira, mas vários factores, entre os quais a circunstância de ter residência para o faroleiro e sua família, conferiram-lhe aos olhos da população o "estatuto" de farol. Em Milfontes, "Farol" é uma marca, uma referência, na paisagem e no imaginário da população: quando alguém vai ao Farol não significa que vai entrar nas suas instalações, mas ao lugar que fica nas suas imediações. E o nome que a toponímia local regista é o de Farol: Ponta do Farol, Praia do Farol. Não se trata, nestes dois exemplos, da luz ou do edifício, em si, mas da sua expressão toponímica. Se numa perspectiva, digamos, purista podemos contestar esta designação relativamente ao equipamento em questão, nunca o podemos com propriedade fazer em relação aos topónimos que originou, porque neste campo a lógica é diferente, uma vez que contém uma dimensão social que está além de considerações meramente técnicas.
Convenhamos que, em termos semânticos, farolim também é farol. Em 1909, o comandante Adolfo Loureiro, reputado engenheiro hidráulico, na sua obra Portos Marítimos de Portugal, volume IV, chama-lhe "farol" e, em 1962, o capitão-tenente A. B. Rodrigues da Costa, em artigo dos Anais do Clube Militar Naval, volume de Julho-Setembro, designa-o por "farol de Milfontes". Portanto, a designação farol tem mais de um século de existência, não só à escala local, mas também na pena de autoridades sobre a matéria. Em Portugal, não é, aliás, o único equipamento deste género nomeado simultaneamente por farolim e farol.
Vem a propósito, que, em Milfontes, presumo, só o autor destas linhas se refere, na linguagem corrente, ao farolim, como farolim, e sempre meio a brincar porque julga saber o que está em causa – as subtilezas que envolvem a oposição entre uma classificação técnica do apetrecho luminoso de segurança marítima e a sua apropriação/construção imagética pela população ao longo dos anos.
Farolinologia é o título desta crónica. O termo não existe na língua portuguesa, mas, à laia de neologismo, imaginei que poderia ser a "ciência dos farolins" e, por extensão, o género de "ciência" em que a luz que ilumina o caminho do "cientista" é fraca e, portanto, não deixa ver muito longe. Como acontece nos meus bisonhos textos, citados no primeiro parágrafo, e na voluntariosa admoestação da Marinha.



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