17h09 - quinta, 01/06/2023

Água


Fernando Fonseca
1. Quando o projeto Roussell faliu, deixando os destroços pela área intervencionada, outros lhe tomaram o lugar, aproveitando a brecha legal que contradisse a decisão especializada do biólogo Luis Palma, do PNSACV.
Testemunhamos a partir de então o abate de coberto florestal para abrir espaços e a práticas proibidas dezenas de anos antes na Alemanha para esterilização dos solos com etanoato de sódio, destinada a eliminar os micro-organismos do ecossistema de base, beneficiando deste modo, em exclusivo, as monoculturas, com a agravante de, por saturação dos solos, se ter verificado escorrência para o mar, com danos acentuados na flora e fauna costeira.
A região de entre Mira e Seixe tonou-se cobiçada maioritariamente por estrangeiros. O argumento de que estes projetos iriam criar milhares de postos de trabalho esvaiu-se quando os novos colonizadores descobriram que seria mais barato pagar a intermediários para traficarem gente do sueste asiático, seduzida pela propaganda do "eldorado" português; imigrantes que, como sempre aconteceu ao longo dos tempos, caíram nas malhas de indivíduos e organizações sem escrúpulos, muitas delas criadas na circunstância e especializadas na exploração de quem mal consegue sobreviver. Grandes beneficiários deste esquema, os novos exploradores alijam responsabilidades que, com a maior paz de espírito, atribuem aos intermediários.
Assim, o que sobra do ganho de quem duplamente explorado aqui vem trabalhar escoa-se para o outro lado do mundo.

2. Ouço argumentar que ficam os impostos das empresas, os descontos para a Segurança Social e as receitas das vendas no estrangeiro.
Lembro, a propósito, que uma grande empresa nacional do ramo dos hipermercados transferiu a sua sede para a Holanda devido aos impostos serem lá mais baixos. Temos cá colonizadores ingleses, americanos, chilenos, espanhóis, outros, e alguns portugueses. Creio que será ingenuidade admitir que essas empresas, de quem escuso dizer os nomes porque não as conheço todas, tenham transferido as sedes fiscais para Portugal, sabendo que aqui lhes espera o IRC português. Quanto ao produto das vendas de frutos vermelhos e outros, quase totalmente exportados para essa Europa, quem é que acredita que o dinheiro regressa ao território que possibilita tal riqueza, sabendo-se dos esquemas de transferências tão bem dominadas por especialistas ao serviço dessas internacionais?
Voltando à questão da água, lembro-me de ouvir há mais de 40 anos que modelos de previsão climática alertavam para a desertificação do sul de Portugal segundo um processo lento, mas irreversível, das alterações climáticas.
A barragem de Santa Clara foi criada para atenuar essa tendência, considerando modelos de agricultura sustentável e não as superproduções intensivas e monoculturais que, pelo menos em alguns casos, à revelia de legislação protetora, iniciaram a destruição dos sistemas microbiológicos, que são a base de toda a vida e fertilidade dos solos.
Assistimos ao longo dos anos à descida implacável do nível das águas da barragem de Santa Clara e lembremo-nos de que as explorações intensivas são responsáveis por mais de 80% do consumo da água do Mira. Não se tratando já só da destruição da paisagem considerada há 40 anos como natural e biologicamente diversificada, essas explorações agrícolas, apresentadas como modelo de poupança dos recursos hídricos, estão de facto 24 sobre 24 horas a escoar as reservas.
A água pode vir a acabar? "Depois logo se vê". Mas atenção aos alheados, que este "logo se vê" está a chegar irreversivelmente, em proporções cada vez maiores. Diz a experiência que quando algo proporciona lucro fácil e rápido, mobiliza mimeticamente todos os que querem aproveitar a oportunidade. Quem chegar primeiro tem sucesso assegurado. Ignoram, ou fingem ignorar, que o que compensa para cinco, leva 50 à ruína.
Acaso ignoram os responsáveis pelo ordenamento do território e pelo Ambiente a tragédia ambiental e, brevemente, a económica, que está a acontecer no Parque Doñana, no sul da Andaluzia? Que incapacidade é esta de aprender com o erro, mesmo quando se trata de terceiros, para tomar as necessárias e urgentes medidas preventivas?

3. Tardiamente, a ministra da Agricultura emitiu uma portaria proibindo a implantação de novos equipamentos, exceto os já autorizados. No meu entendimento, também estes deveriam ser suspensos, cumprindo compensações legais, se tal forem devidas.
Fala-se agora de considerar recursos alternativos para dispor de água, concretamente da abertura de furos. É do conhecimento geral que muitos agricultores e floreiros se adiantaram ao processo administrativo, furando clandestinamente. A propósito desta alternativa, chamo à consciência, que a consequência imediata, devido à redução dos lençóis freáticos, é a secura de poços, nascentes naturais e a morte de ribeiras, a que se associa a doença ou a morte de indivíduos que compõem a floresta, e que já começou. A água no subsolo é perfeitamente comparável ao sistema circulatório de todos os seres vivos. A extracção desenfreada desse sangue telúrico pode comparar-se à sangria das sanguessugas quando sugam o sangue dos animais que, sedentos, bebem a água estagnadas dos charcos. Alguém desejará uma terra exangue?
Há décadas que os espanhóis construíram transvases com centenas de quilómetros. Se entre nós as cheias do Mondego ultrapassam a capacidade de contenção da barragem da Aguieira, com ruinosas inundações como são exemplos as de Coimbra até à Figueira da Foz, porque não a condução dos excessos para as regiões ao sul do Tejo?
Sem impedimento de que isso possa um dia ser concretizado, proponho que, sem perda de tempo, se comecem a instalar centrais de dessalinização, pois não há qualquer dúvida de que o oceano, aqui tão à nossa beira, é fonte inesgotável.
E não vale a pena perderem tempo e dinheiro a criar equipas para estudar o que já se faz muito significativamente em Israel, na nossa ilha de Porto Santo e, brevemente, no Algarve. Repliquem-se em série as existentes, enquanto se melhora a tecnologia, e instalem-se ao longo da faixa costeira, tanto para manutenção das explorações, como, por razões de proximidade, para as populações do litoral.
Quanto à energia necessária para o seu funcionamento, não nos falta o sol para centrais fotovoltaicas. E se, antes das sedentas estufas e afins, a água disponível alimentava as necessidades de uma agricultura sustentável (leguminosas de sequeiro, fonte de proteína vegetal e outras que importamos podendo produzi-las aqui), reservem-se as águas fluviais para uma agricultura sustentável e recuperadora da biodiversidade.
Precisamos de racionalidade política que faça uma gestão duradoira da água, tendo em atenção o futuro dos naturais e residentes do PNSACV. Não cortem a água a quem nasceu e vive nesta terra e que precisa dela para viver, em vez de privilegiar quem chegou para colonizar enquanto der, em proveito próprio, aquilo que, até ver, conserva ainda o estatuto de Parque Natural.



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