10h42 - quinta, 13/07/2023
A classe média e o mundo unipolar
Fernando Almeida
É tentador pensar que a classe média europeia se desenvolveu em consequência do aumento da formação escolar e profissional,
resultante da terciarização da economia e das mudanças dos processos produtivos. No entanto, é fácil perceber que nas últimas
dezenas de anos continuou a aumentar o peso do setor terciário na economia, com maior formação e especialização dos
trabalhadores, ao mesmo tempo que o poder da classe média se ia esboroando. Seria igualmente tentador procurar estabelecer uma relação entre o atual empobrecimento da classe média (e das próprias classes mais baixas) e uma redução da produtividade, algum tipo de destruturação da economia global, ou da diminuição da riqueza coletiva, mas vemos claramente que nada disso ocorreu entre nós:
a produtividade aumentou constantemente, a economia mesmo com as crises normais do sistema cresceu e a riqueza gerada aumentou igualmente.
Fica assim a pergunta natural: se a riqueza do sistema cresce como nunca antes tinha acontecido, por que motivo a classe média, que em tempos foi o esteio das sociedades ocidentais e a sua marca distintiva, empobrece e tende a emagrecer até se transformar num grupo residual? Porque motivo os trabalhadores especializados e com elevada formação académica são, na prática, cada vez mais os "proletários do século XXI"? Para compreender esta mudança tem forçosamente que se estabelecer a relação entre o velho mundo bipolar, a globalização, e o surgimento do mundo unipolar.
Comecemos pelo princípio.
No interior dos países ricos do Ocidente a distribuição mais equilibrada da riqueza que fez prosperar a classe média resultou, é certo, dos processos de reivindicação dos que trabalham (a "luta de classes", usando a velha terminologia marxista). Mas essa força reivindicativa das massas trabalhadoras só teve peso realmente significativo na distribuição da riqueza enquanto o mundo foi bipolar.
De facto, até à queda do "Bloco Leste" e à sua consequente "diabolização" face à opinião pública, as classes dominantes do Ocidente receavam que as massas
populares se revoltassem com as más condições de vida, e que se "passassem" para o lado do "inimigo", ou seja, que os partidos políticos apoiados pelos dos países do Leste tomassem força e fossem eventualmente capazes de se chegar ao poder.
Por este motivo era necessário manter os povos calmos e satisfeitos com as suas vidas quotidianas e, por isso, as reivindicações sindicais foram sendo atendidas e os que viviam do seu trabalho foram sendo melhor tratados e remunerados.
Com a queda do "segundo mundo" (como se chamava então aos países de Leste) e a quase total eliminação das ideologias socialistas, as massas trabalhadoras perderam apoios práticos e também "marcos ideológicos" para onde se dirigir e a classe do poder (composta por um cada vez menor número de gigantescas multinacionais pertencentes a meia dúzia de famílias) perdeu o medo que elas se revoltassem, por saber que já não tinham alternativa de modelo social, nem apoio prático em sítio algum do mundo. O processo de eliminação dos modelos sociais e laborais, conduzido pelas elites ocidentais completou-se com o desmembramento da antiga Jugoslávia, atacada violentamente pela OTAN não tanto para enfraquecer um país eslavo (como poderia
ter parecido na época), como sobretudo para desmembrar o modelo económico e laboral baseado na autogestão e na cogestão. Convém aqui lembrar que o modelo da antiga Jugoslávia dava excelentes provas, tanto no desenvolvimento da economia, inovação e competitividade, como na distribuição de riqueza pela sociedade, não sendo nem o modelo soviético de centralização estatal (em que o Estado anulava a iniciativa privada e o
desenvolvimento empresarial), nem o modelo liberal anglo-saxónico (em que as grandes empresas dominam tudo e controlam o próprio Estado).
Extintos os modelos económicos, sociais e políticos alternativos, a classe de poder ficou de mãos livres para aumentar os seus proventos e degradar as
condições de vida dos que vivem do seu trabalho. Neste processo, as grandes corporações conseguiram progressivamente a captura das elites políticas do mundo ocidental, corrompendo os
dirigentes dos partidos de poder tradicional, convocando-os para "aprovação" nos fóruns do submundo do poder (como Bilderberg e outros), e colocando-os a governar mesmo contra os interesses dos seus próprios povos.
As elites superpoderosas do mundo aumentaram os rendimentos com a exploração dos assalariados, mas também cada vez mais com a subtração de riqueza aos pequenos e médios empresários, que frequentemente são gente que além de muito trabalhadora tem iniciativa empresarial: todos de uma forma ou outra contribuem atualmente para o crescimento das gigantescas
corporações que dominam o mundo.
A alienação das massas foi- se promovendo com aliciantes programas de televisão, concertos, "futebóis"
O total controlo da informação pelo domínio dos meios de comunicação tradicional e das redes sociais completa o cenário. Controlando a informação controla-se o pensamento de quem a recebe e, assim, hoje
pode-se fazer dos povos o que bem se entender: a nós, portugueses, até nos fizeram acreditar que éramos uns "calações" que tínhamos mais férias e feriados que os demais europeus, menos horas de trabalho diário e que tudo o que de mau acontecia na economia portuguesa era, afinal, culpa nossa e não da má gestão dos governos e da usura dos "mercados"
E muitos de nós acreditaram nisso!
Mas o mundo unipolar, controlado pelos interesses dos grandes grupos económicos e financeiros ocidentais que tem governado o planeta, pode vir a transformar-se num mundo bipolar ou, mais provavelmente, num mundo multipolar, e os povos talvez possam voltar a poder ter mais peso nas escolhas e receber uma mais justa parte da riqueza que criam. Neste tempo de crise aguda e incerteza sobre o rumo do mundo, em que se perspetiva a
possibilidade de a unipolaridade dominante enfraquecer, renasce a esperança que os poderosos voltem a temer que os povos fujam ao seu controlo e, assim, que estes sejam mais respeitados e melhor tratados.
Sei que a maioria das pessoas quando, por exemplo, olha para o conflito miliar na Ucrânia, vê uma guerra entre a Rússia e a Ucrânia ou, quanto muito, uma guerra entre os Estados Unidos e a Rússia, passada na Ucrânia. Mas se pensarem bem verão que aquela guerra é apenas uma batalha numa guerra muito mais vasta, em que uns pretendem o controlo de todos os povos do planeta e outros querem criar uma nova ordem mundial sem que um único império esmague os povos e domine todo o mundo.
Mesmo que não me agradem outros modelos de poder, sei que para nós, pessoas comuns, dividir os poderosos só pode ser bom.
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