16h25 - quinta, 15/05/2025

O mito da floresta primordial


Fernando Almeida
Com demasiada frequência me tem acontecido ao longo da vida pensar ao arrepio da crença dominante, talvez pela natureza irreverente que me acompanha desde moço ou pela indisciplina inquieta de quem não se contenta com as verdades consagradas, mas pouco lógicas. Esta tendência dissonante da voz dominante só me tem trazido incompreensões e, por vezes mesmo, problemas. Mas eu, embora os anos me recomendem que me remeta ao silêncio, insisto em ir dizendo o que penso, sabendo embora que muitos me olharão com desconfiança ou mesmo desagrado. Contudo, talvez pela antecipação da razão que imagino me darão um dia, insisto em dizer o que hoje possivelmente será incompreendido, admitindo que o tempo me dará a razão que no momento me possam negar. Isto vem a propósito do mais que consagrado mito que "a floresta é mãe de todas as virtudes" e que o Homem a destrói, comprometendo o futuro da sua própria espécie e de toda a vida na Terra. Como acho que, contra a voz corrente, nada disso faz sentido ou sequer corresponde à verdade, arrisco uma opinião diferente.
O primeiro mito que penso ser necessário desmentir é que há cada vez menos floresta. Na verdade, ao contrário daquilo que vulgarmente se pensa e se faz crer, hoje há muito mais florestas e manchas verdes no geral que num passado não muito distante. A NASA é perentória em afirmar que o planeta está mais verde, sobretudo pela contribuição da China, que florestou áreas imensas de desertos com um espantoso sucesso, mas também pelo crescimento das áreas verdes da Índia e de muitos outros países. Apenas nos últimos 20 anos a área foliar do mundo aumentou o equivalente a toda a floresta da Amazónia, muito embora em algumas áreas tropicais a mancha florestal tenha sido efetivamente reduzida.
Por falar em Amazónia, convém esclarecer que também não é verdade que aquela enorme mancha verde seja uma floresta virgem sem intervenção humana. Hoje sabe-se com certeza firme que as descrições de uma Amazónia povoada por milhões de pessoas e milhares de povoações, feitas pelo Frei Gaspar de Carvajal, correspondem a uma realidade comprovada pela arqueologia, o que explica a distribuição de espécies de árvores fruteiras que ainda hoje sobrevivem em grande abundância nos locais onde havia as antigas povoações. Assim, é seguro que no passado havia imensas extensões de áreas agrícolas na Amazónia e não, como se diz uma floresta virgem intocada.
No que se refere a Portugal, qualquer um que observe fotografias da primeira metade do século XX ou estude a cobertura de fotografia aérea de 1947 feita pela RAF (Royal Air Force), perceberá que, sem qualquer margem para dúvidas, hoje este cantinho da Ibéria está incomparavelmente mais verde. Apesar de tudo isto, o pensamento edílico dos intelectuais urbanos que dominam a opinião coletiva, não só dá a entender que o planeta está menos verde que no passado – e que por consequência é necessário florestar a todo o vapor –, como cria a ideia que uma floresta extensa e velha seria a realidade existente na nossa região e em todo o mundo, e que essa formação seria de uma riqueza imensa no que respeita a abundância de vida e sua diversidade. Mais uma vez, nada mais errado.
Há no mundo áreas verdes que praticamente não ardem sem a "ajuda" do Homem. Isso acontece nas grandes massas florestais dos climas equatoriais e também nos boreais. No entanto, em outras áreas do mundo tropical, mas também nos climas temperados com uma estação seca prolongada, como os de Portugal, o fogo é uma constante fazendo parte do sistema natural, mesmo sem a intervenção humana. Foi por esta realidade ser incontornável que se evoluiu entre nós, sobretudo no sul do país, para os povoamentos florestais de baixa densidade, de sobro, azinho, carvalho negral e mesmo de pinheiro manso, a que chamamos "montado". Este tipo de povoamento resulta da evolução milenar da cultura dos povos, a par com a natureza em que vivem, e corresponde na verdade a um modelo muito bom de utilização do espaço numa lógica agro-silvo-pastoril. Curiosamente, se observarmos com atenção os nossos montados, veremos que lembram as savanas arbóreas africanas, onde a intervenção humana terá sido menor, mas onde se evoluiu para uma paisagem semelhante.
Vale a pena explicar que se não for o Homem a criar fogo na natureza nestas regiões do mundo, ele surgirá inevitavelmente um dia por qualquer outra origem, e com um impacto totalmente catastrófico para o ambiente. Por isso, tradicionalmente em todo o mundo onde o fogo faz parte do sistema natural, o Homem se antecipava aos grandes incêndios avassaladores, fazendo queimadas de pequena escala enquanto o coberto vegetal não é demasiado alto e denso. Deste modo, se renovam pastagens, substituem matos pobres por coberturas herbáceas, criando composições de habitats diversificados e biologicamente ricos. Somava-se a isso o facto de os pequenos incêndios não produzirem calor bastante para calcinar o próprio solo e destruir a rede de raízes que lhe dá coesão, ao contrário dos fogos em florestas densas que atingem temperaturas elevadíssimas e tudo destroem na sua passagem. Em fogos florestais recentes em Portugal lembro-me de ver imagens de garrafas de vidro parcialmente fundidas ou deformadas, o que mostra que as temperaturas na superfície do solo devem ter rondado uns espantosos mil e quatrocentos graus. Nestas condições nenhuma vida sobrevive e mesmo o solo fica sujeito a uma erosão potencialmente arrasadora. Ora nada disso acontecia com as queimadas tradicionais dos pastores, que viam, pouco tempo depois das primeiras chuvas, um manto verde cobrir de novo o solo.
No que toca à sobranceria e desrespeito com que os técnicos urbanos têm tratado a cultura e a tradição popular, tenho a lembrar que esse problema não é exclusivamente lusitano, bem pelo contrário. Tal como cá, desde a América do Norte até à Austrália, passando pela Europa, se perseguiram as gentes que mantinham a tradição de fazer as suas queimadas, se multaram e prenderam, até que um dia, espante-se, se percebeu que eram eles que tinham razão, e se começou a recuperar essas antigas práticas. E os mesmos que perseguiram e prenderam os pastores que queimavam as serras de forma controlada andam agora a aprender a fazer queimadas controladas para evitar incêndios incontroláveis. Interessante, não?
Por outro lado, também se sabe hoje que a perturbação moderada dos habitats gera diversidade e riqueza, e que aquela imagem de um suposto "equilíbrio" estático que conduziria a uma "floresta climax" não passa de uma abstração teórica completamente desligada da realidade. E, finalmente, percebe-se, mas sobretudo assume-se, que o fogo é parte dos ecossistemas de vastas regiões do mundo e que foi com a sua participação que toda a vida na Terra evoluiu. Por isso, olhar para o fogo como destruidor da natureza é tão absurdo como pensar que tem que se extinguir os elefantes em África porque destroem muitas árvores. O fogo na natureza não pode ser eliminado, temos antes que aprender a geri-lo, como faziam os nossos avós.



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