11h57 - quinta, 01/10/2020

A raiva


António Martins Quaresma
Qualquer dicionário lhe dirá que a palavra "raiva" tem dois principais significados: exprime um sentimento de fúria intensa, de ódio ou de rancor, ou refere-se a uma doença infecciosa, também designada por hidrofobia. Dispenso-me, por agora, de debitar sobre a primeira acepção, mesmo reconhecendo que o discurso do rancor e do ódio têm vindo a proliferar, sobretudo por intermédio de uma casta de debutantes da política, que, convenhamos, além de maus, são asininos "até dizer chega".
Vou, portanto, falar da hidrofobia, não como técnico de saúde, que não sou, mas como observador de factos humanos inscritos no tempo, que, melhor ou pior, gosto de ser. Voltando ao dicionário, a raiva é uma doença, causada por um vírus, que ataca o sistema nervoso dos mamíferos, caracterizada por estados de agitação que podem levar ao delírio furioso e à paralisia. O nome de hidrofobia, que significa "aversão à água", vem-lhe de um dos seus sintomas característicos.
Como é susceptível de afectar os cães, ela pode ser transmitida ao homem por uma mordedura de animal contagiado, e, até à invenção da vacina anti-rábica, pelo cientista francês Louis Pasteur, era frequentemente mortal. O terror infundido pelos animais com raiva era um dos sentimentos mais intensos entre os homens que viveram umas duas gerações antes da minha.
O tema dos "cães danados" deu, naturalmente, origem a narrativas populares, em que, não raramente, a realidade cedia o passo a fantásticas fabulações. Na minha infância e juventude sempre ouvi a história de um médico, da terra de meus pais, que ao autopsiar um cão que possuía, morto com raiva, se havia cortado acidentalmente e contraíra a doença, acabando, também ele, por morrer. Em terras próximas divulgou-se, porém, a versão de que o pobre médico, revelada a doença, teve, afinal, de... ser abatido. A força das antigas histórias de cães raivosos, activamente perseguidos e exterminados, contaminara a narrativa com a crédula e absurda aplicação ao humano da mesma prática usada com os animais.
Um vetusto santuário, na região ganadeira do antigo Campo de Ourique, onde os cães desempenhavam importante tarefa no controlo e na guarda dos rebanhos, São Romão de Panóias, estava creditado como muito eficaz na cura dos crentes infectados que lá se dirigiam. A romaria anual a São Romão, de gente da região, teve grande popularidade até um passado recente.
Brito Camacho, o conhecido político republicano de Aljustrel, que, no virar do século XIX para o XX, vinha com a família a banhos para o Litoral Alentejano, concretamente para Milfontes, escreveu, no seu Gente Rústica (1921), algumas palavras, de bom sabor, sobre a festa de São Romão (em Agosto) e o medo que os cães danados provocavam nas gentes, personificadas por um velho pastor, o Romana. Leiamo-lo:
"Ia jurar que o Romana, já relativamente avançado em anos, morreu na ignorância do que fosse o medo – a não ser dos cães danados. Tremia só de pensar que havia de raivar-se uma cabeça do seu rebanho, e como sabia, por ouvir dizer, que os lobos também se danam, como os cães, quando uma rês se lhe tresmalhava, na serra, logo ele entrava numa aflição, menos pelo receio de que os lobos pudessem matá-la, do que pelo receio de eles pudessem mordê-la, estando hidrófobos. Para ele a raiva não era doença; era possessão demoníaca, contra a qual não havia exorcismos eficazes.
Contava ele que um homem dos Aivados, mordido por um cão danado, esteve duas semanas inteirinhas sem comer, sem beber, sem dormir, e um belo dia, tomado de uma fúria nunca vista, mal se contendo sem morder as pessoas que dele se aproximavam, deitou a correr, sem evitar obstáculos, em direcção a S. Romão. Diziam as pessoas que o tinham visto nessa belga, que ele corria mais que um comboio. Rebentou, o desgraçado, quando chegou à vista do Calvário [apenas a umas dezenas de metros da ermida], e contaram uns homens que andavam na desmoita, ali perto, que ele tinha rebentado com um estrondo semelhante ao de um trovão."
Como se vê, "antigamente" a raiva era coisa do demónio e os que tinham a pouca sorte de ficarem enraivados procuravam o remédio santo lançando-se em loucas correrias, mais rápidos que comboios (epítome da velocidade no princípio do século XX) – antes, afinal, de estoirarem com grande fragor, quase a chegarem à salvação. Muito pior do que "o" Covid!

O autor utiliza o novo
acordo ortográfico



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