15h03 - quinta, 27/06/2024

O Carocho


Fernando Fonseca
Carocho era o nome do segundo jumento que tivemos.
O primeiro, aquele de que as pessoas mais velhas se lembram comentando a sua inteligência, foi o Santinho, embora na sua memória ambos se confundam sendo conhecidos por "o burro ensinado". Provocavam a admiração de toda a gente porque, ao contrário dos outros jericos guiados à vara ou arreata, entendiam "tudo" o que o meu pai lhe dizia. Claro, que tanto eu como o meu irmão também falávamos com eles. Certo é, que obedeciam a ordens simples que se resumiam em andar para a direita, virar para a esquerda, andar mais depressa ou mais devagar, alçar a pata e vir ao cabresto ou, simplesmente, chegar junto do dono. Claro que, e puxando agora a brasa à sardinha familiar, a inteligência do burrinho estava repartida com a capacidade de ensinar do seu mestre.
Verdadeiramente e na generalidade, a aprendizagem dos burros, como a dos humanos, para lá das potencialidades genéticas, o desenvolvimento das suas competências, dependem muito dos métodos e das estratégias de quem ensina.
Voltando ao Carocho.
Em 1973, vivendo sozinho e já gravemente doente, o meu pai teve de se desfazer do Carocho, sem que eu soubesse a quem o tinha vendido.
Em 1982, para uma Exposição de Artesanato Utilitário que realizei com estreia do espaço que é hoje o Café Paraíso, na Zambujeira do Mar, percorri toda a freguesia de São Teotónio recolhendo, por empréstimo a curto prazo, artefactos que fossem representativos da arte e do engenho pessoal ou profissional dos meus conterrâneos.
Na minha infância, havia na aldeia cinco olarias, que em produção plena respondiam às necessidades de uma imensa população do litoral desde Sines a Lagos, e para o interior até Sabóia. Na data em que ocorreram estes acontecimentos já não havia nenhuma. Um dos oleiros, o António Candeias militar da GNR. estabeleceu a sua própria olaria no Cercal. E consequente, com a dinâmica da FACECO, a Câmara Municipal de Odemira montou uma olaria municipal a cargo do mestre Mágoas.
Procurando o último mestre em São Teotónio, encontrei o avô da Ana, menina dos meus tempos de criança, a gozar a reforma no seu tranquilo refúgio na horta das Seisseiras. Acompanhado dos meus filhos, encontrei o "mestre" Chico Mestre na horta. Não me reconhecendo, porque não nos víamos desde os meus 15 anos, disse-lhe quem era e ao que ia.
Pois, sim senhor, ainda lá devo ter uns restos, pode ser que lhe sirvam. Uma pausa e… não ouviu um burro a azurrar quando passaram além, ao pé da cabana? Sim, ouvimos, mas então… e ele: É o Carocho, que o seu pai me vendeu.
Fui instantaneamente inundado por um turbilhão de lembranças. Curioso e emocionado, fomos os quatro visitar aquele amigo esquecido. Gostei de o ver; gostei muito. O mesmo porte, maior que o Santinho, aspeto geral revelador de bom trato, a mesma cabeçorra, olhos como duas noites, cada qual com uma estrela da manhã a brilhar lá no fundo, pelo à máquina zero acima da meia barriga.
Fizemos-lhe festas; pelo lombo e a descer para a barriga, as habituais palmadinhas no pescoço, curtas frases amigas – Quem me havia de dizer que te voltava a ver!
E tirámos fotografias de família.
Partimos dali deixando o Carocho com Chico Mestre, o seu amigo na velhice. E fui contando às crianças histórias esquecidas da saga dos "burros ensinados", a quem, segundo comentários anónimos, só faltava aprenderem a ler.
Na semana seguinte fui ao casebre que fora olaria na rua da Pouca Farinha buscar um ou dois vasos, dois púcaros, uma panela e um alguidar, peças que já não interessavam a ninguém, remetidas que foram para coisas antigas e pouco práticas, devido à invasão dos plásticos.
Chocante notícia, deu-me o mestre Chico Mestre: Olhe, o Carocho morreu no dia seguinte a vocês terem lá estado.
Tudo o que começa acaba; tudo o que nasce morre. É uma regra infalível que interiorizei cedo na vida. Contudo, a inevitabilidade dos ciclos na natureza, assim como a aceitação natural da morte, não impedem um arrepiar de pele e uma sensação de tristeza que fica indelevelmente impressa na memória, sendo as palavras excessivamente pobres para a exprimir.
E lembrei-me de Argos, o cão de Odisseu/Ulisses, que esperou 20 longos anos pelo regresso do seu dono a Ítaca; e que, inundado pelo prazer de reencontro e das carícias da mão amiga a percorrer-lhe o lombo, sucumbiu aos pés do rei, tornando-se, na cultura clássica e europeia, símbolo da fidelidade, que o bom trato, a amizade e o amor alimentam.



Outros artigos de Fernando Fonseca

COMENTÁRIOS

* O endereço de email não será publicado

07h00 - terça, 13/05/2025
Ação de iniciação
à canoagem em
Alcácer do Sal
O Centro de Apoio à Divulgação e Fruição do Rio Sado, em Alcácer do Sal, recebe nesta terça-feira, 13, uma ação de formação de iniciação à canoagem e stand up paddle canoe, promovida pela Câmara Municipal em parceria com a Federação Portuguesa de Canoagem.
07h00 - terça, 13/05/2025
Comitiva de Goiás
visitou Porto de Sines
O Porto de Sines recebeu, a 2 de maio, a visita de uma delegação da sucursal de Goiás da Câmara de Comércio Brasil-Portugal Centro-Oeste, que integrou empresários e representantes políticos daquele estado brasileiro.
07h00 - terça, 13/05/2025
Campo Redondo
venceu Liga INATEL
de Beja em futebol
A equipa de futebol da ACRS Campo Redondo, desta localidade do concelho de Odemira, venceu a edição de 2024-2025 da Liga INATEL de Beja.
07h00 - sexta, 09/05/2025
Sudoeste Alentejano
quer captar mais turistas
As entidades regionais de turismo do Alentejo e Ribatejo e do Algarve acabam de lançar um novo projeto de comunicação e gestão do branding do Sudoeste Alentejo, para captar mais visitantes para esta região, que abrange os concelhos de Odemira, Aljezur e Monchique.
07h00 - sexta, 09/05/2025
Câmara de Santiago
do Cacém vai construir
48 novas habitações
A Câmara de Santiago do Cacém já aprovou a abertura do concurso público para a construção de 48 habitações a custos controlados em duas freguesias deste concelho, num investimento de 7,2 milhões de euros.

Data: 02/05/2025
Edição n.º:

Contactos - Publicidade - Estatuto Editorial