Um aqueduto "incompleto, partido e corrompido", para ilustrar a incapacidade de resolver os problemas associados à gestão dos recursos hídricos do rio Mira, no concelho de Odemira, foi a proposta do coletivo Corpo Atelier para a representação oficial portuguesa na Bienal de Arquitetura de Veneza 2023, que teve como tema "Futuros Férteis".
A instalação, criada pelos arquitetos Filipe Paixão, Diogo Silva e Egl?Kliu?inskait?, esteve patente na cidade italiana, entre maio e novembro do ano passado, e pode agora ser vista, até ao dia 27 de abril, no Palácio Sinel de Cordes, em Lisboa.
"A nossa instalação é, sobretudo, a manifestação física da nossa incapacidade enquanto arquitetos para propor algum tipo de artefacto ou estratégia concertada que fosse capaz de solucionar a problemática da atual gestão dos recursos hídricos do rio Mira", explicam ao "SW", por escrito, Filipe Paixão e Diogo Silva.
Segundo os arquitetos, "a origem desta problemática é inequivocamente política e, como tal, o nosso entendimento foi de que a única solução concertada e sustentável teria que ser, também ela, de natureza política".
"Assim, as ferramentas próprias da disciplina da arquitetura pareceram-nos, desde o inicio, manifestamente insuficientes. Como tal, a nossa proposta é sobretudo uma denúncia da atual situação através do desenho de um aqueduto enquanto símbolo universal de uma estrutura democrática para acesso a água que aqui se apresenta incompleto, partido e corrompido", reforçam.
De acordo com os arquitetos, com esta obra "pretende-se, sobretudo, a denúncia da realidade deste território, que ao olhar distraído de quem o visita, passa despercebido".
"Passam despercebidos os milhares de hectares cobertos por estufas, a exploração dos que nelas trabalham e a forma como vivem, passam despercebidas as dificuldades dos produtores locais que se vêm repentinamente sem acesso à água que sempre tiveram para as suas culturas, assim como o real impacto que tudo isto tem nas populações locais", afirmam.
A proposta do coletivo Corpo Atelier partiu de um convite feito pela curadoria da representação portuguesa na Bienal de Arquitetura de Veneza de 2023, liderada por Andreia Garcia, que solicitou a sete grupos de jovens arquitetos a criação de propostas para sete hidrogeografias distintas, previamente identificadas e espalhadas ao longo de todo o território nacional.
É neste âmbito que surge o rio Mira enquanto exemplo da "ação antropocêntrica" sobre este tipo de recursos, juntando-se à bacia do Tâmega, à região do Douro Internacional, ao Médio Tejo, à albufeira do Alqueva, à Lagoa das Sete Cidades (Açores) e às ribeiras madeirenses.
A partir deste desafio, Filipe Paixão, Diogo Silva e Egl?Kliu?inskait? criaram um aqueduto, "temporário" e "visível a partir de vários pontos do território, que se apresenta incompleta, em estado de ruína, evidenciando a ineficácia da distribuição da água".
A instalação inclui também um conjunto de desenhos à mão, simulações a três dimensões e uma maqueta. Pelo meio, o livro A quinta dos animais, serviu de alegoria para pensar os vários atores.
"Assim, nos vários desenhos surgem pontualmente porcos identificados com os nomes das multinacionais de produção de frutos vermelhos e outros produtos hortícolas, assim como cavalos com nomes dos países de origem dos imigrantes asiáticos, ou conjuntos de ovelhas anónimas", explicam os arquitetos.
Para já, a instalação está em exposição em Lisboa, mas os arquitetos do Corpo Atelier admitem que a mesma possa ser apresentada em Odemira.
"Faz todo o sentido que esta discussão tenha continuidade e que possa, depois de ter estado em Veneza, ir à 'origem' e contribuir para uma possível solução", sublinham os autores, para quem "o grande mérito desta representação portuguesa na Bienal de Arquitetura de Veneza não é tanto o de trazer propostas exequíveis ou até coerentes, mas o trazer à discussão estes temas".